A cruel arte de pedir desculpas por existir

Alguns hábitos ou traços de personalidade são construídos e/ou cultivados durante tanto tempo, que ao constatarmos sua existência e quão negativa ela pode ser, fica difícil visualizar uma situação diferente daquela.

Me explico.
Por mais que eu deteste admitir e por mais que a maioria das pessoas ao meu redor jamais desconfie disso pelo meu jeito meio desaforado e superficialmente seguro, sou uma pessoa que vive pedindo desculpas por existir. Como se o fato de estar no mundo fosse algo tão errado, que nascer e viver seria uma sorte pela qual teria que me desculpar para todo o sempre.
Parece ridículo, eu sei. Mas é uma coisa muito forte e, ao mesmo tempo sutil. E já tão enraizada dentro de mim, que não consigo nem imaginar o que seria eu sem essa sensação. Eu com a noção de que "mereço tudo que há de bom na vida e não tenho que me martirizar por aquilo que não sei ou não fiz" é um quadro que minha mente já não consegue pintar.

Para se entender a gravidade desse tipo de auto percepção, pense nisso: Hitler provavelmente foi capaz de não se ver como um peso para o mundo. E eu, pamonha, sim.

É claro que isso não ocorre de maneira simples e óbvia. É uma construção paulatina que me levou a, sem querer, sentir que minhas fortunas não são legítimas ou merecidas, e que minhas qualidades não passam de características positivas que todo mundo possui. O que é meu, só meu, são os defeitos, as falhas, as limitações. 



Não raro, desse tipo de percepção vem outra condição péssima e cada vez mais comum: a síndrome do impostor. A pessoa tem tanta certeza que não vale nada que, se constrói algo de bom na vida, acha que ganhou pela sorte de ter convencido a todos de que valia algo. Mas a culpa vem junto. A culpa de saber que, no fundo, você não merece o que tem de bom. E um dia, verão isso tão claramente quanto eu.

Alguns resultados só foram percebidos por mim recentemente e para o meu completo e absoluto estarrecimento, como minha fobia descontrolada de viajar de avião. Amo viajar. Queria muito. Mas passei anos entrando em pânico e, consequentemente, boicotando sutilmente cada oportunidade e tentativa de viajar.

De repente, na terapia, é claro, tive um estalo. Meu medo (que existe, sim, num nível também inconsciente) extrapola os limites das expectativas reais de um acidente simplesmente porque eu acho que não mereço curtir a vida e viajar. E se eu não mereço, é claro que o avião vai cair. É a punição perfeita para alguém que ousou aproveitar a vida sem merecer.

Qualquer um tem direito de rolar os olhos pensando "de onde essa louca tirou isso?". Mas é assim. Triste, eu sei.

Eu não defendi a criança e a adolescente que eu era, por acreditar que, se eu fosse contra meus pais ou se eu os decepcionasse fazendo escolhas que desaprovariam, eu não poderia permanecer vivendo e muito menos sendo feliz. Fiz o curso que provava que eu era séria e não viciada em moda e televisão. Assumi uma personalidade que se encaixou direitinho na rotina familiar depois do divórcio dos meus pais, pois, para manter meu lugar no mundo eu tinha que ser prestativa, né?

Eu fui amiga de pessoas que não tinham nada a ver comigo, porque, afinal de contas, que honra era ter pessoas que cogitaram serem minhas amigas?  E é claro que eu gostei de todo cara que gostou de mim, porque como uma pessoa desprezível como eu não vai retribuir um sentimento desse? Que sorte! Tudo veio só com sorte! Não teve nada a ver com eu falar inglês fluentemente por pura dedicação, desde a adolescência. Nem com meu português bastante proficiente num mundo onde mataram as crases. Não tem a ver com o fato de ter começado a trabalhar cedo e ser uma pessoa que absorve informações como uma esponja através da prática. Nem nada a ver como o fato de ser uma pessoa que quer ver os amigos felizes, e que faz questão de estar disponível quando alguém precisa conversar. Não tem a ver com minha preocupação com o mundo e com as pessoas, o que me faz ponderar minhas ações e querer ser solícita e cordial com a maioria das pessoas.

Enfim. Isso tem acabado. Vai acabar ainda mais e isso traz consequências. Tem gente que ama a gente, mas que acostumou tanto com nossa prontidão e pedidos de desculpas que fica chateada quando a gente decide que não vai mais fazer isso. É duro. Se defender e se amar é uma arte difícil de aprender depois de velha. Mas tamos aí. Até porque quero que minhas filhas saibam que eu as amo profundamente, e que tenho, sim, mais maturidade e experiência para fazer certos julgamentos. Mas quando elas sentirem, em seu âmago, que estão certas e precisam fazer algo que vai contra minha determinação, prefiro que elas amorosamente me mandem tomar no cú.

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